quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

LUCIANA MONTECHIARI



O GOSTO DAS ALMAS
LUCIANA MONTECHIARI

Gosto de xícaras
Gosto de xícaras brancas
Com beiradas bordadas de jasmim
Que abrigam o chá de almas
Fluído das lágrimas, mares de sal.

Xícaras brancas com beiradas de rosas
Que envolvem o conteúdo
Do calor de almas que se abraçam

Gosto do silêncio das xícaras brancas
E do calor saltam dançarinas
O bordado de jasmim sorri.

O chá das almas exala fadas brancas, diáfanas
Que dançam no ar por segundos e morrem
Espalhando o perfume das frutas e das flores.

DESEJO
LUCIANA MONTECHIARI

Venha, que esse corpo é tua casa
Tua morada de orquídeas
Tua morte e solidão
Há querubins se rindo dessa patifaria
Dessa mistura de língua
Onde saliva se torna perfume
Venha e adormeça meu sono
As estações correrão sucessivas
E esse lugar se perderá através do espelho
Em meio à nudez da fusão.

TRIGO FÊNIX
LUCIANA MONTECHIARI

Por esses imensos trigais
Insetos, dores, partos e partidas
Ziguezagueiam – correntes de ar
A semente amarelada esmigalhada
Morre semente e renasce pão

Esse trigo fênix
Trigo parto,
Trigo partido,
Trigo sangue, filho da puta – filho da dor.

E no meu peito
Esses imensos trigais se entrelaçam
Vida e morte, Luciana
Se cumprimentam e se abraçam
Esmigalhado o trigo, filho do teu eu
Que sai do teu chão adubado
E se doa para a morte – alimento

É preciso seguir
Com dores, horrores e Iraques
Romper a placenta, ser o pão.

Morte e vida.

E no meu peito, esses imensos trigais. 

SEM SONO
LUCIANA MONTECHIARI

Quando criança
O avô me levou ao morro verde
E lá, numa caixa cimento – ossada de cabrito
Essência branca
Fedor da morte

E eu não consegui dormir.

Quando criança
A avó me levou ao cemitério
Covas abertas, a dura terra adubo
“estão vazias, porque Deus os levou aos céus”
A solidão dos buracos, a leveza dos corpos

E eu não consegui dormir.

Adulta, penso na escuridão do ventre barro
Nessa desolação de carnes – suprema e querida mudança

E eu não consigo dormir.

SONO
LUCIANA MONTECHIARI
(A Manuel Bandeira)

É tempo de chorar aqueles que dormem
De bordar tecidos, de reunião
Digo que chegou o tempo de chorar
Suspiros, profundas respirações, troca de fluídos
É tempo de juntar cílios, línguas, pernas
É tempo de chorar juntos
Temos direito à nudez, aos ossos, à palha
E é tempo de chorar nossos mortos
Nossas mortes, nossa carne
É tempo de chorar por aqueles
E por tudo aquilo que dorme
Profundamente. 

OLHARES FLORADA
LUCIANA MONTECHIARI

Dói olhar os flamboyants em flor, no verão.
Dói olhar os flamboyants em flor, no verão, porque são vermelhos.
o sagrado em um galho, feito fratura exposta
Sangue seiva escorre, formando poças de sangue flor pelo chão.
mar seiva tapete

(Nesse momento, tenho alma árvore raiz fincada. Presa)

Pingos flamboyant no chão fervura.
Flores fritas no asfalto, uma tristeza sacrifício
passando pelo canto do olho.
vermelhidões reverberam num intenso céu de raios.
Na soleira das portas, sóis dançam.
Eu saio raízes; o peito florada, brincadeira de roda.
Eu saio flor.
De fininho.

DAGUERREÓTIPO
LUCIANA MONTECHIARI

Sua figura esmaece
triste
Ainda olho a ti através da rede
dessa fina rede tecido puída
memória
Vou te perdendo, como em todas às vezes
fugaz
E te sinto fotografia amarelada
Perdendo cores, ganhando manchas
No fundo de alguma gaveta
Do corpo

SALGADA
LUCIANA MONTECHIARI

I
Filete muralha - ameaça
represa – eu tem nome:
chama inundação
broto d’água tragédia
       
II
Pedra – eu rachadura
frágil dureza
Pressão corrente sanguínea
fissura
               
III
Padre – eu asperge de água benta
seu calor e seu dia
com água salgada nos olhos
Salgada

IV
Sobraram areias duna
onde germinam plantículas
tentativa de flores
água de mim.

VAMOS QUE JÁ DEU HORA
LUCIANA MONTECHIARI

Essa luz – co – fusco invadindo em tarde tremor
Me diz que é hora
Essa luz amarelada invadindo a pele e o peito
Me diz que é hora
Essa luz cíclica,
essa luz que inicia o fim – começo de dia
abrindo pernas da noite
e descobrindo o seio mármore da manhã
Me diz que é hora
É hora de derramar leite pelo chão
e de se esparramar pelo assoalho
Leitosamente
É hora de correr, gritar arranhões,
dizer espasmos, dançar o medo
Criança
É hora de fechar a janela,
dar um adeus simbólico a vida
Chorar mortes, esperar o calor útero rompimento
Primeiro choro
É hora, simplesmente, é hora.

AMANDA
LUCIANA MONTECHIARI

Olhos claros de claras pontes
havia um mundo inteiro entre nós
Isso não é um poema de amor
com trovas doces, encantos chocalhos
Vamos seguir e exumar tudo
o que é morto nesses campos
Vamos cantar Elis, Monte, Costa
Isso é pra dizer que tuas claras pontes me espreitam
Saliva no seio. Secretas secreções.
Isso é pra dizer que morto ainda vives
em prosa e verso. Meu poema ciúme predileto
Amanda.
Ah, meu amor...
Eu vou te renascer dentro de mim
Eu vou te renascer dentro de mim
e fazer das gotas, cristais.
Dos outonos, carnavais
E todas as sementes emudecerão no ventre
essa terra barro de ninguém
Dos nós, farei caminhos
Das cantigas, sedução
Vamos dançar ao som de Zé Kéti
Salve! Salve! As rainhas do rádio!
Suas pontes olhos se ligavam
aos meus olhos portos.

LUCIANA MONTECHIARI

Dentro desse peito, cactos.
Dentro desses ossos, caatinga.
Essa aridez de duna, esfinge só.

Será que perdi o trem?
Já deu hora?

Essa arbusto seco, essa galho seiva
Falta fermento nesses campos
A nascente o olho d´água
Choram pra dentro da terra – onde ninguém pode ver
Ninguém sente
Ou fareja
Ou pressente
A presença do arbusto só
Morto

Sim, no talo há seiva
Seiva como sangue
Sangue como o pão

Sinto-me só

Será que perdi o trem?
Já deu hora?

DERRAMAMENTO HUMANO
LUCIANA MONTECHIARI

Me derramo
Me derramo sobre folhas
Sobre pétalas
Sobre doces miragens
Me derramo
Derramo Minh ‘alma
sobre mentiras
Lençóis limpos
Estátuas de sal
Derramo Minh ‘alma
sobre cortinas abertas
Caminho de terra molhada
Chuva fresca
Derramo meu ser em silêncio
Sofridamente semeio a solidão
Serenamente sinto o sol - e derramo.

VERMELHIDÃO
LUCIANA MONTECHIARI

Flamboyant vermelho
– despedaço de verão
Em calçada tinindo de graus
Olhos humanos fitam olhos árvore
Salada de almas:
mistura de casca de pele
suor, saliva, solidão
Escorro palavras, escorres flor
Sangue-seiva pelos galhos,
sangue flor pelo chão

6 comentários:

  1. Não gosto de analogias poéticas, morro de vontade de mencionar Silvia Plath não direi. Montechieri é a dureza diamantina e a leveza do lírio e o sempre Ouro-pretano. Montechieri trás febra terçã, e também, mas uma esperança de amor em corações: vivos e mumificados. Montechieri será uma poetisa universal, atestam cartas, cristais, intelectos, alinhamento de astros, e o tempo - frio, sem pressa e inexorável. Montechieri não é mais uma promessa: A poetiza já o é. Sam de Mattos

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  2. Sei bem, quando não gosto de uma poesia.
    Sei tão bem quando gosto...
    Parabéns Luciana!!!
    PS- Adorei a foto tb.
    Uly Riber

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  3. Luciana em si sempre foi um poema, desses que andam, trabalham, sangram, gozam, rimam. Não sou amigo, sou leitor.

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