quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

TANUSSI CARDOSO


O TÊNUE FIO DO TEMPO
TANUSSI CARDOSO

O menino, o pai e o violino
unidos, únicos, sozinhos

Árvores num jardim de delícias
dedos de brinquedos do destino

Delicados, os gestos do pai
ensinam ao menino o violino

Cordas num mesmo abraço
sons de um mesmo sino

(Só a vida determina
a equação dos caminhos)

Não se sabe onde doeu o grito
quando o elo foi perdido

O  menino cresceu do pai
entre solidões e atritos

E nunca mais se tocaram
como se toca um violino

(Exercício do olhar, 2006)

GESTOS
para Jiddu Saldanha
TANUSSI CARDOSO

O que vem de dentro
pudera nunca se exprimir
palavra
O que vem de dentro
é ouro
puro silêncio
pudera nunca se exprimir
mundo
O que vem de dentro
é tudo
só se pode exprimir
mudo

(Viagem em torno de, 2000)

CHORANDO SOBRE UM POEMA
(lendo “Sob a Espada”, de Ferreira Gullar)
TANUSSI CARDOSO

Debruço-me sobre o livro:
o poema invade olhos, tecidos.
Vozes.
Que espada mais aguda
que o eco de seu som?
Que fogo mais forte crepita
eterno
além da paixão?

A palavra
viva
transcende a sua hora.
Sempre
é tempo
que não nasceu.

E o poeta é só
um homem
dentro
de Deus.

(Viagem em torno de, 2000)

SUBSTANTIVOS
TANUSSI CARDOSO

Faca é faca
pão é pão
fome é fome
amor é amor.

Estranho desígnio das coisas
de serem exatamente elas
quando as olhamos sem paixão.

(Boca maldita, 1981)

FIAT LUX
para Cristina da Costa Pereira
TANUSSI CARDOSO

o tempo
vem dos pés e das mãos e da água e dos ventos
e da terra
e do fruto do ventre das mães
vem das árvores primevas
da paz que faísca em sua casca
nasce da pureza do sangue das areias
da existência da folha em branco
das ancestrais lembranças do caráter mágico
das palavras

o tempo
nasce das escrituras dos pássaros
ou do seu canto
ou do riso do primeiro galo na primeira manhã
ou antes
quando a idéia de um Deus queimava os olhos
e as crianças brincavam
no sopro da espuma dos versos dos poetas

vem da seda das abelhas
da pele das tartarugas
do encontro da aranha e sua rede
do ínfimo grão dos desertos

o tempo
começa em ti
no teu gemido diante do umbigo da lua
e das espirais das nuvens
nasce das cidades invisíveis
do movimento que existe no jugo do criador
e da pedra fundamental
nasce do amor das lagartas
das uvas moídas no vinho
do fogo dos vulcões
dos céus e dos parques
do espírito que perfuma o ar

nasce do mistério gozoso
que existe entre o espinho e a rosa
dos relâmpagos que iluminam os cabelos
da primeira formiga no seu labor diário
das asas dos peixes quando esses voaram

o tempo
nasce do acaso das galáxias e das estrelas
do húmus das chuvas
nasce da memória da poeira
dos incêndios do desejo
vem ungido pelas dores dos profetas
nasce do voo de Deus e seu suor
e do dedo do sol entre as sombras

o tempo
resiste no sorriso lento da noite
ofertando-se à boca estelar e melancólica
da aurora mais longínqua
e harmoniza o silêncio
apascenta o vinagre
colhe os estrumes e o mel
e nos faz estremecer

sós e humanos
(Exercício do olhar, 2006)

DIÁRIO
TANUSSI CARDOSO

É silêncio e teu ombro pesa.

Todos os teus murmúrios são inúteis
- mesmo a tua ida ao teatro.

Teu corpo
pregado numa cruz imaginária
foge de ti
e te acusa da febre que incendeia o quarto.
Os papéis sobre a mesa do trabalho
contam histórias tristes
e as borboletas nos lagos gelados têm mais vida.

É tudo simples: praias, serras, estradas,
carros, engarrafamentos, shoppings, sonhos:
a palavra é simples: a morte é simples:
as luzes dos altares nada queimam:
nos mármores das estátuas
quebramos nossos espelhos.

E tudo teima em te acusar: teu sexo estúpido,
teus amigos imortais, o amor que não consola,
a família nos retratos,
a faca suja na manteiga
que sangra o pão do dia.
Olhas da janela os pombos mirando os milhos;
olhas o namoro nos fios;
enganas teu rosto com tua paz suspeita.

Teu peito te trai. Teu poema te trai. Teu país te trai.
O olho enrugado te trai.
Teu jornal te faz de tolo.
Tuas guerras santas são falsas.
Teu cão te ladra.
Teu gato te arranha.

O sol  entra em tua cama
e te cospe no rosto
o ofício de outra manhã
a cumprir.

É silêncio e teu ombro pesa.

(A Medida do deserto, 2008)

DO APRENDIZADO DO AR
TANUSSI CARDOSO

imaginemos o ar solto na atmosfera
o ar inexistente à luz dos olhos
imaginemos o ar sem senti-lo
sem o sufocante cheiro de abelhas e zinabre
o ar sem cortes e fronteiras
o ar sem o céu
o ar de esquecimentos
imaginemos fotografá-lo
fantasma sem textura
moldura inerte
quadro de sugestões e aparências
imaginemos o ar
paisagem branca sem o poema
vácuo impregnado de Deus
o ar que só os cegos vêem
o ar silêncio de Bach

imaginemos o amor
assim como o ar

(Exercício do olhar, 2006)

CILADA
TANUSSI CARDOSO

O amor não é a lua
iluminando o arco-íris
nem a estrela-guia
mirando o oceano

O amor não é o vinho
embebedando lençóis
nem o beijo louco
na boca úmida do dia

O amor não é a angústia
de se encontrar o sorriso
nem o vermelho
do coração dos pombos

O amor não é a vitória
dos navios e dos barcos
nem a paz cavalgando
cavalos alados

O amor é, sobretudo
a faca no laço do laçador
O amor é, exatamente
o tiro no peito do matador

(Viagem em torno de, 2000)

A HORA ABSOLUTA
TANUSSI CARDOSO

Estranhos, meus mortos abrem as janelas
penetram em meu quarto
e me sufocam.
Insinuantes, me beijam e sangram em mim
alegrias e pecados
acariciando, sem pudor
meus sonhos, minhas partes e meus ossos.
Meus mortos e seus gemidos
têm rostos, sinais
e olhos que fagulham calafrios.
Ousados, vêm no breu do sono
e dormem em minha cama
e me despem
e se debruçam sobre meu corpo
silentes e queridos
e rezam e choram por mim
como a lua clamando sua outra metade
como um espelho colando os próprios vidros.
Meus mortos sem censura
meus delicados mortos
que, à noite, penteiam meus cabelos
e, solidários, preparam o meu jardim.

(Viagem em torno de, 2000)

AS MORTES
TANUSSI CARDOSO

quando o primeiro amor morreu
eu disse: morri

quando meu pai se foi
coração descontrolado
eu disse: morri

quando as irmãs mortas
a tia morta
eu disse: morri

depois, a avó do Norte
os amigos da sorte
os primos perdidos
o pequinês, o siamês
morri, morri

estou vivo
a poesia pulsa
a natureza explode
o amor me beija na boca
um Deus insiste que sim

sei não
acho que só vou
morrer
depois de mim

(Viagem em torno de, 2000)

AS TIME GOES BY
TANUSSI CARDOSO

Meu bem
Me chama de Humphrey Bogart
Que eu te conto Casablanca
Me tira esse sobretudo
Sobretudo, conta tudo
Que eu te dou uma rosa branca
Mas, meu bem
Me chama de Humphrey Bogart
Te dou carona em meu carro
Chevrolet – que sou bacana
Te levo, meu bem, pra cama
Fumamos nossa bagana
Te provo que sou sacana
Te faço toda a denguice
Te dispo que nem a Ingrid
Te dou filhos de montão
Só pra te ver sufocar
Mas me chama de Humphrey Bogart
Faço chover colorido
Como num bom musical
Te chamo de Lauren Bacall
Te danço, te canto, te mostro
Entre as pernas meu bom astral
Te deixo pro enxoval
Meu chapéu preto de gângster
Mil poemas de ninar
Só pra te ouvir sussurar
Como te amo meu Humphrey Bogart!

(Poemas Cariocas, 2003)

4 comentários:

  1. O que vem de Tanussi
    é pura poesia
    "é tudo
    só se pode exprimir
    mudo"

    Ao poeta e a sua obra, a minha admiração!
    Jorge Ventura

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  2. Oi, Naldo, oi Jorge, ser aplaudido por dois poetas da grandeza de vcs é um grande prêmio! Naldo, o seu trabalho é extremamente gentil e generoso; um coração para muitos, de poucos. Jorge Ventura, vc sabe da minha admiração pelo seu poema e da felicidade que sinto por nossa amizade.Obrigado por tudo! Abração meu. De coração.

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  3. Suaves e imensos como o sol na eternidade de todas as luzes, assim sinto os poemas de Tanussi, assim leitora de poemas tantos, em privilégio, neste momento. Obrigada querido amigo/poeta Tanussi Cardoso.
    Eurídice Hespanhol

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  4. Nao conhecia Tanussi, confesso que amei seus poemas. Parabéns poeta.

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