O TÊNUE FIO DO TEMPO
TANUSSI CARDOSO
O menino, o pai e o
violino
unidos, únicos,
sozinhos
Árvores num jardim de
delícias
dedos de brinquedos do
destino
Delicados, os gestos do
pai
ensinam ao menino o
violino
Cordas num mesmo abraço
sons de um mesmo sino
(Só a vida determina
a equação dos caminhos)
Não se sabe onde doeu o
grito
quando o elo foi
perdido
O menino cresceu do pai
entre solidões e
atritos
E nunca mais se tocaram
como se toca um violino
(Exercício do olhar,
2006)
GESTOS
para Jiddu Saldanha
TANUSSI CARDOSO
O que vem de dentro
pudera nunca se
exprimir
palavra
O que vem de dentro
é ouro
puro silêncio
pudera nunca se
exprimir
mundo
O que vem de dentro
é tudo
só se pode exprimir
mudo
(Viagem em torno de,
2000)
CHORANDO SOBRE UM POEMA
(lendo “Sob a Espada”,
de Ferreira Gullar)
TANUSSI CARDOSO
Debruço-me sobre o
livro:
o poema invade olhos,
tecidos.
Vozes.
Que espada mais aguda
que o eco de seu som?
Que fogo mais forte
crepita
eterno
além da paixão?
A palavra
viva
transcende a sua hora.
Sempre
é tempo
que não nasceu.
E o poeta é só
um homem
dentro
de Deus.
(Viagem em torno de,
2000)
SUBSTANTIVOS
TANUSSI CARDOSO
Faca é faca
pão é pão
fome é fome
amor é amor.
Estranho desígnio das
coisas
de serem exatamente
elas
quando as olhamos sem
paixão.
(Boca maldita, 1981)
FIAT LUX
para Cristina da Costa
Pereira
TANUSSI CARDOSO
o tempo
vem dos pés e das mãos
e da água e dos ventos
e da terra
e do fruto do ventre
das mães
vem das árvores
primevas
da paz que faísca em
sua casca
nasce da pureza do
sangue das areias
da existência da folha
em branco
das ancestrais
lembranças do caráter mágico
das palavras
o tempo
nasce das escrituras
dos pássaros
ou do seu canto
ou do riso do primeiro
galo na primeira manhã
ou antes
quando a idéia de um
Deus queimava os olhos
e as crianças brincavam
no sopro da espuma dos
versos dos poetas
vem da seda das abelhas
da pele das tartarugas
do encontro da aranha e
sua rede
do ínfimo grão dos
desertos
o tempo
começa em ti
no teu gemido diante do
umbigo da lua
e das espirais das
nuvens
nasce das cidades
invisíveis
do movimento que existe
no jugo do criador
e da pedra fundamental
nasce do amor das
lagartas
das uvas moídas no
vinho
do fogo dos vulcões
dos céus e dos parques
do espírito que perfuma
o ar
nasce do mistério
gozoso
que existe entre o
espinho e a rosa
dos relâmpagos que
iluminam os cabelos
da primeira formiga no
seu labor diário
das asas dos peixes
quando esses voaram
o tempo
nasce do acaso das
galáxias e das estrelas
do húmus das chuvas
nasce da memória da
poeira
dos incêndios do desejo
vem ungido pelas dores
dos profetas
nasce do voo de Deus e
seu suor
e do dedo do sol entre
as sombras
o tempo
resiste no sorriso
lento da noite
ofertando-se à boca
estelar e melancólica
da aurora mais
longínqua
e harmoniza o silêncio
apascenta o vinagre
colhe os estrumes e o
mel
e nos faz estremecer
sós e humanos
(Exercício do olhar,
2006)
DIÁRIO
TANUSSI CARDOSO
É silêncio e teu ombro
pesa.
Todos os teus murmúrios
são inúteis
- mesmo a tua ida ao
teatro.
Teu corpo
pregado numa cruz
imaginária
foge de ti
e te acusa da febre que
incendeia o quarto.
Os papéis sobre a mesa
do trabalho
contam histórias
tristes
e as borboletas nos
lagos gelados têm mais vida.
É tudo simples: praias,
serras, estradas,
carros,
engarrafamentos, shoppings, sonhos:
a palavra é simples: a
morte é simples:
as luzes dos altares
nada queimam:
nos mármores das
estátuas
quebramos nossos
espelhos.
E tudo teima em te
acusar: teu sexo estúpido,
teus amigos imortais, o
amor que não consola,
a família nos retratos,
a faca suja na manteiga
que sangra o pão do
dia.
Olhas da janela os
pombos mirando os milhos;
olhas o namoro nos
fios;
enganas teu rosto com
tua paz suspeita.
Teu peito te trai. Teu
poema te trai. Teu país te trai.
O olho enrugado te
trai.
Teu jornal te faz de
tolo.
Tuas guerras santas são
falsas.
Teu cão te ladra.
Teu gato te arranha.
O sol entra em tua cama
e te cospe no rosto
o ofício de outra manhã
a cumprir.
É silêncio e teu ombro pesa.
(A Medida do deserto,
2008)
DO APRENDIZADO DO AR
TANUSSI CARDOSO
imaginemos o ar solto
na atmosfera
o ar inexistente à luz
dos olhos
imaginemos o ar sem
senti-lo
sem o sufocante cheiro
de abelhas e zinabre
o ar sem cortes e
fronteiras
o ar sem o céu
o ar de esquecimentos
imaginemos fotografá-lo
fantasma sem textura
moldura inerte
quadro de sugestões e
aparências
imaginemos o ar
paisagem branca sem o
poema
vácuo impregnado de
Deus
o ar que só os cegos
vêem
o ar silêncio de Bach
imaginemos o amor
assim como o ar
(Exercício do olhar,
2006)
CILADA
TANUSSI CARDOSO
O amor não é a lua
iluminando o arco-íris
nem a estrela-guia
mirando o oceano
O amor não é o vinho
embebedando lençóis
nem o beijo louco
na boca úmida do dia
O amor não é a angústia
de se encontrar o
sorriso
nem o vermelho
do coração dos pombos
O amor não é a vitória
dos navios e dos barcos
nem a paz cavalgando
cavalos alados
O amor é, sobretudo
a faca no laço do
laçador
O amor é, exatamente
o tiro no peito do
matador
(Viagem em torno de,
2000)
A HORA ABSOLUTA
TANUSSI CARDOSO
Estranhos, meus mortos
abrem as janelas
penetram em meu quarto
e me sufocam.
Insinuantes, me beijam
e sangram em mim
alegrias e pecados
acariciando, sem pudor
meus sonhos, minhas
partes e meus ossos.
Meus mortos e seus
gemidos
têm rostos, sinais
e olhos que fagulham
calafrios.
Ousados, vêm no breu do
sono
e dormem em minha cama
e me despem
e se debruçam sobre meu
corpo
silentes e queridos
e rezam e choram por
mim
como a lua clamando sua
outra metade
como um espelho colando
os próprios vidros.
Meus mortos sem censura
meus delicados mortos
que, à noite, penteiam
meus cabelos
e, solidários, preparam
o meu jardim.
(Viagem em torno de,
2000)
AS MORTES
TANUSSI CARDOSO
quando o primeiro amor
morreu
eu disse: morri
quando meu pai se foi
coração descontrolado
eu disse: morri
quando as irmãs mortas
a tia morta
eu disse: morri
depois, a avó do Norte
os amigos da sorte
os primos perdidos
o pequinês, o siamês
morri, morri
estou vivo
a poesia pulsa
a natureza explode
o amor me beija na boca
um Deus insiste que sim
sei não
acho que só vou
morrer
depois de mim
(Viagem em torno de,
2000)
AS
TIME GOES BY
TANUSSI
CARDOSO
Meu bem
Me chama de Humphrey
Bogart
Que eu te conto Casablanca
Me tira esse sobretudo
Sobretudo, conta tudo
Que eu te dou uma rosa
branca
Mas, meu bem
Me chama de Humphrey
Bogart
Te dou carona em meu
carro
Chevrolet – que sou
bacana
Te levo, meu bem, pra
cama
Fumamos nossa bagana
Te provo que sou sacana
Te faço toda a denguice
Te dispo que nem a
Ingrid
Te dou filhos de montão
Só pra te ver sufocar
Mas me chama de
Humphrey Bogart
Faço chover colorido
Como num bom musical
Te chamo de Lauren
Bacall
Te danço, te canto, te
mostro
Entre as pernas meu bom
astral
Te deixo pro enxoval
Meu chapéu preto de
gângster
Mil poemas de ninar
Só pra te ouvir
sussurar
Como te amo meu
Humphrey Bogart!
(Poemas Cariocas, 2003)
O que vem de Tanussi
ResponderExcluiré pura poesia
"é tudo
só se pode exprimir
mudo"
Ao poeta e a sua obra, a minha admiração!
Jorge Ventura
Oi, Naldo, oi Jorge, ser aplaudido por dois poetas da grandeza de vcs é um grande prêmio! Naldo, o seu trabalho é extremamente gentil e generoso; um coração para muitos, de poucos. Jorge Ventura, vc sabe da minha admiração pelo seu poema e da felicidade que sinto por nossa amizade.Obrigado por tudo! Abração meu. De coração.
ResponderExcluirSuaves e imensos como o sol na eternidade de todas as luzes, assim sinto os poemas de Tanussi, assim leitora de poemas tantos, em privilégio, neste momento. Obrigada querido amigo/poeta Tanussi Cardoso.
ResponderExcluirEurídice Hespanhol
Nao conhecia Tanussi, confesso que amei seus poemas. Parabéns poeta.
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