sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

MARCIA LEITE


AUTOBIOGRAFIA

Definir as partes que me cabem
seria mais simples não fosse
a mania de perseverar metas
polir o objetivo
queimar incensos
consultar oráculos
além de limpar espaços
para o novo que desejo

lançar os dados sobre a cama
e sorrir a sorte
é o que faço
a cada noite que a vida me presenteia
o dia é o dia
luz reveladora
sobre o mistério da escuridão
o desnudo poderá me interessar
e daí traço o a seguir
o que me pacificará os sentidos

me gosto assim:
água da fonte
pedra na estrada
caminho de rio
leito fundo escavado habitado
clareza e enigma
montanha e vales
flor de cacto
olhos de águia
lágrimas e sorrisos
obstinação e delicadeza
sol e chuva
terra e sal

meu melhor diálogo é comigo mesma
é nas pausas dos argumentos
que alcanço as respostas que preciso
o delírio e a lucidez são antagonistas
nesta peça que sou atriz principal
e se às vezes derivo à loucura
é por puro deleite
já que vibro o delirante
coisa de alma

prefiro o salgado ao doce
o tépido ao gelado
chás perfumados me seduzem
adoro frango com gengibre
morango amora chocolate
persisto o sanhaço
o gafanhoto do Imperador
o louco do tarô
o vermelho e o negro
o voo do besouro
Neruda e Guimarães
o monge no Tibet
Anas
Carolinas
Pedros
Juniores
Marias
Josés
o êxtase de Tereza
a Mulher Vestida de Sol
Seu Filho Ascenso
o Dalai Lama
o I Ching
o Tantra
o Buda
o Tao

me gosto assim:
paz e perigo
coração dançante
luas de Vênus
palavras dissonantes
desespero e contrição
trovões à meia-noite
amor ao meio-dia
languidez e tensão
preguiça e correria
compulsão e teimosia
tempestade e mansidão.

BAMBUZAL
(a José Leite)

O bambuzal dança no sul
porque a divindade está no sopro
indicando o caminho
fecho a porta e rumo ao norte
em busca de mim
vou trançar os dedos
nas raízes de meu pai
fincar o estandarte vermelho
na fenda das minhas dores
desaguar minhas vergonhas de sulista
cavar a terra com as mãos de José
para ver brotar o açude mágico
que matará minha sede de justiça
correr entre os pés de mandioca braba
pintar meu rosto com o pó da terra
olhar o mundo com os olhos d’água de Joana
para melhor entender os homens
deitar na caatinga
banhar meu ventre no luar do sertão
reparir meus filhos
e crescer.

VESTIDO VERMELHO

É preciso sobreviver à carne
reforçar as doces lembranças
resgatar a alma do limbo
viver – no abraço do homem ocasional
todos os delírios amorosos já escritos
reverenciar os gozos
desobstruir a veia que os alimenta
fazer jorrar a fonte dos desejos
não respirar pausas ou arrependimentos
nem alternativas ao que se completou
dissecar os retrocessos
desistir de reencarnações
tocar a vida como se única
apostar no momento
criar um mantra delicado
(repeti-lo ao pé do próprio ouvido
nas noites sem amante)
alongar os músculos da pélvis
exercitar os gemidos noturnos
(para as próximas viagens)
deixar crescer os cabelos
às mãos do amor seguinte
não recusar eventuais parceiros de sonhos
acreditar que a lua brilha só por você
e que o sol aguarda ansioso sua vez
aceitar o ombro que se oferece
chorar a lágrima da adolescência
sorrir a piada da vida
escolher a fantasia de colombina
beijar o arlequim e o pierrô
autopsiar os medos
ser mórbida e obscura
para seduzir os complicados
lúcida e equilibrada
para os analisados
comprar uma manta de lã
para as tardes frias das carências
escalar a montanha do tempo
- leve como quem dança -
e ousar – sempre - um vestido vermelho
no final de um poema.


DAS MORTES

V I

dar-se conta, de repente
numa tarde de sol
que a vida é curta
dói o olhar nas nuvens
vem a vontade de reter
o azul do céu nas retinas
o voo das andorinhas
o vento no rosto
a borboleta na flor
o sabiá da manhã

se morrer pudesse ser
como nos romances
nos braços do amante
do amigo
visão de anjos
sinos tocando
mão de Deus te afagando
som de palavra na alma
hora marcada
a morte poderia até ser sentida
como vida
               se pudesse...

LEVE É O PASSO DE QUEM AMA

leve é o passo de quem ama
mesmo na noite solitária
a alma sem limites voa

livre é o pensamento de quem ama
como o som dos pássaros
que beija o outono na vidraça

denso é o poema de quem ama
forte cheio rouco como mastro
que segura - sem prender - a vela
que navega o barco rumo ao porto

leve é o passo de quem ama
pois quem ama vive segue sonha
inocente como quem nasce.

EPITÁFIO

aqui jaz Márcia Leite
a que viveu inutilidades
conversava com abelhas
e conhecia (pelo nome)
todas as andorinhas
de final de tarde.

(em Versos Descarados, Oficina dos Editores)

INSETOS

O poeta é um louva-deus nos campos da humanidade; nunca um gafanhoto!

Márcia Leite

2 comentários:

  1. Parabéns pelos belos versos!
    Parabéns, Naldo, pelo espaço!

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  2. Obrigada Rosangela pelo comentário!
    Querido Naldo Velho, a delicadeza de nos divulgar assim bonito é a cara da tua grandiosa alma poética. Obrigada, amigo, por seres do jeitinho que és. Um beijo.

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